Thursday, October 24, 2013

Veneza no subúrbio

(inspirado nos Contos dos Subúrbios de Shaun Tan e numa noite de chuva do Montijo)

Naquela terra as pessoas estavam habituadas às cheias. As cheias eram rápidas. Caía uma carga de água grande e começavam a surgir grandes charcos no meio dos quarteirões. E nas zonas de vivendas formavam-se pequenos rios.
Nessas alturas todos se cansavam muito a tirar a água das ruas. Tinham de andar de galochas e se as chuvas durassem mais de dois dias, tinham mesmo de ir buscar os barcos dos pescadores para poderem circular. As pessoas que não tinham galochas iam a correr comprá-las. E as que não eram pescadores nem tinham pescadores na família porque trabalhavam nas fábricas de cortiça, perguntavam aos vizinhos se conheciam um pescador com um barco para as levar a algum lado.
Não era fácil ir a algum lado porque a maior parte dos serviços - escolas, médicos, bibliotecas e cafés - situavam-se no rés-do-chão dos edifícios.
Um dia o presidente da câmara, que tinha muitas ideias mas que raramente executava, dizia ele por falta de verbas, lembrou-se que se havia tantas cheias num ano, o melhor era admitir que a aldeia do Norte, como chamavam estranhamente àquela vila na margem sul da área grande da capital, era uma vila alagada.
Primeiro os moradores achavam que o Presidente da Câmara não estava bom da cabeça, onde já se viu ter uma vila alagada? Depois a Vereadora da Cultura apoiou o Presidente dizendo que assim seria como uma Veneza, não tão turística, claro, nem com palácios antigos, mas a Câmara podia facilitar as coisas aos proprietários dos serviços para passá-los para os primeiros andares.
Depressa os moradores aderiram à ideia. Apesar de não haver muitas verbas (mas lá se encontrou uma verba qualquer) adequaram-se as ruas e as pracetas dos quarteirões às chuvas, e aproveitou-se uma altura de grandes chuvadas para fechar todas as comportas improvisadas. Algumas pracetas transformaram-se em piscinas, outras em portos para guardar os barcos. Os pescadores passaram todos a ter trabalho. Toda a gente da grande cidade já não vinha à aldeia do Norte apenas para comer uns petiscos, agora vinham para ver a Veneza à portuguesa.
Todos os serviços passaram para os primeiros andares. As escolas passaram a oferecer cursos de mergulho, e os trabalhos finais de ciências começaram todos a dedicar-se às espécies marinhas e fluviais. E as fábricas de cortiça começaram a fazer jangadas com rolhas gigantes para serem os novos camiões de transportes de mercadorias nos rios que passavam agora entre as casas. Nem tudo foi feliz para sempre porque passaram a ter ainda mais humidade nas casas, mas talvez quando houvesse verba podia haver uma política de melhorar as casas.

Monday, September 02, 2013

Preciso de vitaminas

Preciso de vitaminas. Para a rentrée e não só. As férias foram cansativas. Levar a família de férias não era uma novidade, mas com um bebé sim.
Muitas opiniões e a independência perdida fizeram de idas ao café só com o M. momentos únicos. O resto mediu-se em medições. Quanto comeu? Quando comeu? O que comeu? (estou a falar do bebé). Deste-lhe de mamar? Outra vez? Ele já pode comer tudo, alvitra-se, aqui e ali. Olha, que estranho, tem um pouco de diarreia. Eu levo-o à praia. Não é preciso pôr creme outra vez. Despe-lhe a t-shirt coitadinho. É só um bocadinho.
Não nasci para a assertividade, está visto, e isso torna tudo mais cansativo. Responder à letra acaba por ser, vindo de mim, uma espécie de afronta, e temo que assim soe aos ouvidos de quem "merece".
As férias seguintes eram supostas serem passadas a 3. Bebé, papá, mamã. Mas não. As férias a três passaram a férias a 5. Bebé, papá, mamã, manos. Tivemos de os ir buscar às férias da mãe, que não estavam a correr como planeado. Assim, a mãe teve com eles uma semana de férias, já connosco em casa e a trabalhar a meio gás. As férias de verão para os manos, de resto, foram passadas na casa da avó durante o dia e connosco à noite depois do trabalho, porque a mãe chateou-se com a avó e foi como se eles só tivessem uma avó. Além disso, o novo trabalho da mãe, é muito importante, pois claro, e não dá para muitas viagens ao Montijo.
Regressados de férias cansativas, tenho uma das notícias mais complexas de gerir de sempre na vida, depois da morte do Bruno. Telefona-me uma amiga. O pai dela matou a mãe, matando-se em seguida. Aconteceu-me isto, disse ela. O próprio dia e seguintes foram dias de trabalho com dificuldade. E depois lá fui a um dos enterros, o da mãe, pois claro, até porque a fazer questão, ela e os irmãos preferiram visitas no dia da mãe.
A vida muda para sempre com uma coisa destas. Entretanto encomendei um livro na Amazon sobre estas coisas e como fazer o luto disto, a ver se consigo dizer alguma coisa de jeito quando houver oportunidade para falar com ela como deve ser.
Isto deu-me para pensar que às vezes me dedico mais aos amigos do que à família. E esta reflexão foi-se espraiando ao longo dos últimos dias de agosto, todos quentes, que não deixam espaço para reflexões prolongadas nem definitivas, nem decisórias. Nisto, o bebé passa de quase 6 dentes para 10, voltando a acordar duas vezes por noite. E à segunda vez eu fico sem dormir - será do calor, das notícias deste ano, ou do café depois do almoço?
Espaço para dizer outra vez - preciso de vitaminas.
E nos últimos dois dias a noticia que dá conta da necessidade de prestar mesmo mais atenção à família. E que me leva mesmo a ir comprar vitaminas. Porque me deitou abaixo e até pensei que ia ficar assim por meses, mas felizmente hoje acordei com vontade desta catarse escrita, e da decisão das vitaminas.
O meu sobrinho teve uma convulsão. Grande. Antes disto tinha tido vários episódios de grandes enxaquecas, às vezes seguido de apatia. Os médicos desconfiam fortemente de epilepsia e o meu sobrinho está neste momento a fazer exames para confirmar. Eles sim ficaram com as férias a meio (ainda faltava uma semana) e no fim a minha irmã se calhar não tem emprego. Também a minha amiga a quem morreram os pais não teve férias, porque ia começá-las no dia fatídico.
Férias eu tive, não tenho que me queixar. Boiei no mar do Algarve sempre que pude, vi sítios novos, até visitei um borboletário tropical!
Mas preciso de vitaminas!