Monday, July 27, 2009

Barcos, flamingos e uma excursão de gaivotas

Há um cemitério de barcos no mar da palha. E uma colónia de flamingos. Há uma excursão diária de gaivotas que vem do cabo carvoeiro para o Tejo. Tudo conflui nos fins de tarde de verão. Correntes de mar e de silêncio de aves budistas, que flectem delicadamente a perna e permanecem elegantes sobre o lodo fértil da maré vazia. Os barcos no mar da palha, lá em baixo, fazem lembrar os contos debaixo de água do Garcia Marquez, cenas fantásticas com sons marinhos e cenas oníricas de que se acorda de repente, no tabuleiro da ponte, a 100 à hora. Os candeeiros da ponte são elegantes como os flamingos. E as pessoas nos carros estão felizes e tristes por regressar do sul e das praias, coradas e quase despidas, e ouvem os seus sons preferidos nos rádios e olham distraidamente para as outras pessoas que vão nos outros carros. As gaivotas vêm de sul e os flamingos permanecem na margem sul do Tejo, e nem todos os olhos que vão nos carros os vêem. O verão tem só um ponto cardeal. Mesmo olhando para poente, é sempre de sul que se olha. As gaivotas sobem pela estrada aérea que acompanha a arriba fóssil olhando para o mar. A excursão de gaivotas é grande, a perder de vista. Vão em bandos de dúzias e chegam aos milhares ao mar da palha para velar os barcos.

Friday, July 24, 2009

desculpe lá, senhora enfermeira

a enfermeira pediu-me para ter calma. calma, sim senhor, é o que as pessoas calmas pedem às ansiosas, que recebem o pedido com relutância. desculpe, senhora enfermeira, é que às vezes demoramos algum tempo a recuperar de notícias que era suposto esperarmos mas que o optimismo deixava uma réstia para uma notícia melhor. é tudo pelo bem e tal, mas a necessidade imediata de sorrir e ficar calma é contraditória com as vontades que os sentidos têm de reagir de outra forma. desculpe, depois lá me passou e já não a vi para dizer qualquer meia dúzia de palavras de apaziguamento.

Monday, July 20, 2009

a serra é a luz suficiente

as minas da serra de sintra continuam nos seus lugares. atravessam montes, ligam-se entre si no meio dos verdes e das árvores, tudo cheio de metáforas como sempre. são árvores duplas como duas pessoas, a dançar ao vento, ou a conversarem, a maior parte do tempo em silêncio. é a terra remexida, por baixo tem raizes, às vezes tem lixo, mas a terra é mesmo assim, esconde tesouros e às vezes não esconde nada. mas cheira sempre bem, nas mãos. a terra da serra são camadas e camadas como as pessoas e as cebolas, camadas macias que sujam as mãos e deleitam as costas. é o quase frio dos fins de tarde de verão, com muito mais humidade do que no resto do mundo imperfeito. são as folhas das árvores em lusco-fusco, com raios certeiros no meio, é a luz suficiente. a serra é a luz suficiente. vi o caminho para a peninha, quem vem do cabo do mundo, as heras, os novos mosqueiros que pararam no tempo, as minas, as flores pequeninas e as amoras à espera de setembro. o invasor pitosporo que dá mais de metade do cheiro da serra. reparei nas entradas gratis para a pena. comi metade de um pacote de queijadas. há caminhos que já não sei onde começam porque os mudaram e porque não me lembro. anda-se a pé com o ruído dos passos no solo ora oco ora crocante. para trás os caminhos desaparecem como nos contos fantásticos. para diante os caminhos são iguais e novos à vez.